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O dia em que eu chorei mais que os familiares

A regra da equipe de saúde é clara: Nunca chorar mais do que o paciente ou os familiares em uma reunião para comunicação de más notícias.

Sr. Bibi, nordestino que vivia sozinho em São Paulo com neoplasia de vias biliares metastática sem nenhuma proposta curativa para o câncer avançado, se queixou de dor nos dentes. Dizia que toda troca da lua, os dentes doíam mais e que essa dor tirava o sossego dele. Ele dizia também que estava morrendo e que queria fazer só mais dois pedidos: tirar todos os dentes que ele ainda tinha na boca e ir embora para Bahia ficar ao lado de sua família.

Na minha avaliação odontológica, eu diagnostiquei 2 dentes com infecção dentre os 10 que ele ainda possuía. Conversei muuuuuito com o Sr. Bibi até ele concordar em tirar (extrair) apenas 1 dente que estava bem deteriorado e restaurar o outro que poderia ajudar na mastigação. E assim foi feito!

Um dia depois do término do procedimento ele me falou que “eu tirei a dor insuportável com mão”.

-Claro que eu tirei com a mão, né? Meu principal instrumento de trabalho!! – eu disse sorrindo e Sr. Bibi também sorriu.

(Eu fiz essa mesma piada em sala de aula e nenhum aluno riu! ahahahaha tudo bem, o que valeu foi o momento vivido).

Voltando para a história…

Sr. Bibi ainda não havia contado sobre sua doença para seus filhos e esposa e por isso, essa conversa precisou acontecer junto com a equipe multiprofissional. Depois de termos resolvido a dor de dente, a assistente social chamou os familiares para uma conversa presencial.

No dia da reunião, a médica explicou a progressão da doença e a assistente social explicou a importância da assistência familiar. Os familiares estavam entendendo tudo com muita maturidade, sem nenhum choro, mas todos sérios. Eu fiquei quietinha o tempo todo (eu sabia que se eu me movesse 1 milímetro eu iria desabar a chorar). Ao final da reunião, o filho mais velho olhou pra mim e disse:

-Você é a dentista, né? Meu pai me contou que você passou grande parte do tempo com ele nesses últimos dias mas você ainda não falou nada. O que você acha disso tudo?
Nesse momento eu gelei, de verdade. Não estava preparada para falar sobre isso. Na verdade, eu não estava preparada para falar sobre nada, mas precisava.

Quando eu abri a boca para falar, muita lágrima saiu do meu olho. Foi involuntário e impossível de segurar. Quando a lagrima saiu eu só pensava na besteira que estava fazendo por chorar mais que o paciente e os familiares, além de escutar uma vozinha que repetia em meu ouvido sobre a regra que era bem clara em uma reunião familiar.

Bem, eu respirei fundo e falei que o desejo de Sr. Bibi era ir pra Bahia e não tinha nenhum motivo para ser diferente. Pedi desculpa pelo choro e me calei novamente.

A reunião acabou, eu me despedi de todos e fui embora com o coração na mão.

Meses depois, Sr. Bibi enviou uma foto comendo acarajé no aniversário de sua esposa e me agradeceu por não ter tirado todos os seus dentes, pois agora ele ainda conseguir comer tudo o que queria.

O coração que estava na mão desde o dia da reunião familiar, ficou quentinho com essa foto que ficará registrada pra sempre!

3 COMENTÁRIOS

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Milena

Eu continuo dizendo : seus pacientes tem muita sorte em cruzar seu caminho.
Você sempre faz a diferença na vida das pessoas. E eu tenho muita admiração e orgulho de vc!

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Marcelo Andrade

Isso é o que acontece com quem emprega amor em tudo que faz! Lindo relato!!

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Cristiane

Nada como essa conexão com os pacientes. Mal sabem eles o tanto que nos ensinam!
Parabéns pela decisão correta no tratamento! Orgulho!

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